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"Sem incentivo, a gente entrega o jogo", alerta diretor sobre crise no cinema

Rodrigo Salles Montenegro

Atualizado: 13 de dez. de 2021


Pedro Asbeg, direto de cinema: "Hoje, a Ancine está aberta, mas não está funcionando"

“Nenhuma cinematografia de economia mais fraca pode sobreviver sem o apoio do Estado”. Essa é a opinião do diretor, roteirista, compositor, além de sócio e ex-diretor do Canal Brasil Paulinho Mendonça, de 73 anos, que está há mais de 50 no ramo, ao comentar a falta de apoio da Ancine (a agência reguladora que fomenta o cinema brasileiro), cujos recursos estão escassos.


Outra figura do cinema nacional, o diretor e editor Pedro Asbeg, 46 anos, também é contundente ao afirmar que, na prática, a Ancine está paralisada: “Hoje a Ancine tá aberta, mas não tá funcionando”. Diante da inoperância do Estado no apoio ao audiovisual, a alternativa para cineastas brasileiros são as empresas de streaming, cujo investimento em produções nacionais têm se mostrado cada vez maior. “Netflix, Amazon, esses caras viraram reis”, comenta Mendonça.


Dessa forma, é possível afirmar que há um processo de privatização do cinema brasileiro: não através da estatização da Ancine, e sim por meio da migração do foco de investimentos – do setor público para o privado.


A maior dificuldade de se fazer cinema


Os diretores Mendonça e Asbeg concordam que a maior dificuldade de se fazer cinema em qualquer lugar do mundo é a captação de recursos para tirar o projeto do papel. Até nos EUA, em Hollywood, onde a indústria cinematográfica está mais do que estabelecida (além de ser um modelo para o resto do mundo) e movimenta um negócio de centenas de bilhões de dólares do setor privado, essa se trata da etapa mais complicada.


Mas mesmo Hollywood precisou de apoio de setores do Estado pra se tornar o sucesso que é hoje e atrair o interesse da iniciativa privada, na década de 1930, conta Mendonça. E com a exceção do modelo de negócio estadunidense, as indústrias cinematográficas de todos os países do mundo atualmente contam com o apoio do governo.


– O cinema italiano, o cinema francês, todos eles têm regras muito claras de incentivo à indústria nacional. A Ancine propiciou isso (no Brasil). Houve um crescimento muito grande de produtoras, porque se criou demanda, num ciclo muito virtuoso. Havia as demandas da televisão, os produtores tentando produzir, e a Ancine, com linhas próprias de financiamento, apoiando essa produção. Foi muito positivo pra indústria.


O início da derrocada da Ancine se deu a partir da posse do presidente Jair Bolsonaro, em 2018, conta Mendonça. Além das dificuldades provocadas pela pandemia do covid-19, outras barreiras têm sido impostas pelo atual governo.


– As injunções políticas estão prejudicando esse momento. Ainda existem as demandas e toda a estrutura montada, mas a Ancine está emperrada. O governo deliberadamente têm criado restrições com uma questão básica, que é o direcionamento do que vai ser produzido. É uma situação nefasta.


“O cinema brasileiro nunca se consolidou, mas esteve próximo”, diz Mendonça.


O momento, como Mendonça define, era o da quase consolidação do cinema brasileiro como indústria, algo que nunca aconteceu. Pra se valer de uma metáfora, o cinema nacional é uma brasa que, com o esforço certo, pode virar fogueira. E em 2019 havia atingido o ápice, conta Asbeg.


Neste ano foram lançados: Bacurau, de Kléber Mendonça Filho, A Vida Invisível de Eurídice Gusmão, de Karim Aïnouz, o documentário Democracia em Vertigem, de Petra Costa, além das terceiras edições das franquias populares Minha Mãe é uma Peça e De Pernas Pro Ar, entre outros filmes.


– Quando a Ancine estava no auge, funcionando super bem, o fundo setorial movimentando milhões de reais e criando uma indústria – e a gente sabia que tinha uma produção incrível no Brasil, variada, uma quantidade absurda de trabalhos circulando por festivais no mundo inteiro – chegou um momento em que tudo foi interrompido. Hoje em dia, não dá pra falar em administração da Ancine. A Ancine está completamente parada.


A presença dos populares citados é importante, pois, como o próprio nome sugere, eles que atraem o interesse do público. Mesmo em Hollywood, são os sucessos de bilheteria que inflamam a indústria (pra seguir na metáfora do fogo), e não necessariamente os aclamados pela crítica e ganhadores de prêmios, produções por vezes herméticas, na visão popular. Desse modo, chega-se à pergunta, feita e respondida pelos entrevistados Asbeg e Mendonça: “quais devem ser os critérios pra se financiar um filme?”.


A visão de Mendonça pode ser chamada de romântica. Para ele, o alcance educacional da obra de arte extrapola o comercial. “Um filme não tem que dar retorno financeiro porque ele dá outros retornos”, afirma. Asbeg concorda, mas acrescenta que se trata de um “debate difícil”.


– Esse é um tema sinistro. Pra uns “tem que financiar filme que dá público”. Pra outros “se deve financiar justamente o filme que não dá público”, pois os populares já vão ter financiamento de qualquer jeito. Por último, tem gente que diz que “o público não é importante, porque condicionar financiamento a ter ou não plateia seria fazer uma censura prévia” – explica. – Se chega a um ponto em que todo filme tem que estar apto a captar. Só é preciso haver uma estrutura (pra aprovar ou não o projeto), como a que a Ancine criou nos últimos anos em que funcionava. Um estudo mínimo, para provar que aquela proposta (de financiamento) se sustenta.


A pergunta torna-se mais pertinente diante da suposta guinada do atual governo, criticada por grande parte da classe artística (incluindo Asbeg e Mendonça), no sentido de condenar manifestações contrárias a ideologia do líder do Executivo. Recentemente, Bolsonaro declarou publicamente que mudaria a cara do Enem, por exemplo. A cultura, bem como o cinema, é um dos principais alvos de críticas do presidente. “O Secretário de Cultura (Mario Frias) é anti-cultura”, opina Asbeg.


A “privatização” do cinema é boa?


O prognóstico do monopólio do streaming provoca insegurança a Asbeg e Mendonça, por motivos diferentes. A Asbeg preocupa a curadoria das empresas: “A gente está na mão dos streamings. E a preocupação deles é estritamente comercial”. Entretanto, pra Mendonça, a “isonomia” de direitos com a concorrência é que mais preocupa.


– É ótima (a chegada do streaming), desde que eles sejam tratados isonomicamente [sic], com tributos e cotas que os outros players do mercado têm. Netflix, Amazon, HBO Max: hoje, todos eles correm em uma terra cinzenta, uma terra de ninguém. Não tem tributo nenhum.


Por outro lado, o próprio ex-diretor do Canal Brasil afirma que “a gestão da Ancine sempre foi duvidosa” e que hoje a atual direção, junto com o Tribunal de Contas da União (TCU), adota uma visão “fiscalista”, além de cobrar prestações de contas de filmes realizados “quinze anos atrás”, o que Mendonça define como uma atitude “descabida” que provoca um inchaço na estatal.


– Se pecou pelo excesso de fiscalização e pela ausência do exercício da fiscalização, mas criou uma política de incentivo que propiciou todo esse crescimento que a gente viu. Hoje vemos essa situação caótica, essa terra arrasada. São essas dualidades. Esse governo, que já é reativo à cultura, está se escudando (através do TCU) para a inoperância da Ancine.




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