Os "últimos românticos" temem que a desestatização da empresa afete a troca de postais e se queixam da falta de esclarecimentos do processo.
Foto: Ariane Gerhardt
“Dois fatores que me fazem trocar cartas: primeiro, é que o hábito de trocar cartas serve como terapia, é algo que me relaxa, me faz esquecer dos problemas externos e ficar mais feliz. Segundo, eu acho a carta algo mais pessoal e verdadeiro. A gente percebe pela forma que a pessoa se expressa se ela está sendo sincera. Isso a escrita te permite ver e a internet não”. Esse pensamento pode soar estranho em tempos de imediatismo e Era digital avançada, mas para a nutricionista Ariane Gerhardt, assim como muitos correspondentes que ela encontrou ao longo de 28 anos trocando cartas, é um sentimento compartilhado. Ela e outros escritores de carta adquiriram recentemente outro sentimento em comum: o medo desse hábito ser prejudicado após a privatização dos Correios.
A gaúcha começou a praticar a troca de cartas com desconhecidos aos 13 anos incentivada pela escola a escrever em alemão e receber cartas em português para treinar novas línguas. Hoje, ela usa as redes sociais como complemento a este hábito. Ariane diz que as as plataformas digitais auxiliam ela a achar novos correspondentes- já que não tem mais listas de endereços em revistas como nos anos 1990- e a conferir se a encomenda chegou corretamente.
Além disso, a nutricionista soma mais de 1.400 seguidores no seu perfil do Instagram em que compartilha dicas sobre cartas, mostra os “mimos” (presentes trocados pelos correspondentes) e conhece mais pessoas interessadas em escrever. Ela também administra um grupo de Facebook, que tem o objetivo de fazer simpatizantes pelas trocas de cartas se conhecerem e mandarem postais entre si. Mas Ariane garante: “A gente conhece a pessoa pelas redes sociais, pega o endereço dela e passa a ter amizade via carta”.
Ariane começou a temer que a troca de cartas estivesse ameaçada pela proposta de desestatização dos Correios. Segundo ela, o governo pensa que ninguém mais troca cartas, que é um serviço desnecessário, e que o projeto não é bem explicado. Ela afirma ser contra a privatização por alguns motivos, como: a possibilidade de não ter tabela única de cartas, como a que está em vigor que é pelo peso e independe do lugar de destino, porque isso pode encarecer e até tornar inviável a troca de cartas; e que a empresa que compre continue a fazer o serviço, mesmo depois do tempo que o governo estipula necessário.
O fiscal ambiental Paulo Joubert Alves começou a trocar cartas há mais de 20 anos e soma em média 40 correspondentes fixos por mês. Ele afirma não ser completamente contra o projeto de privatização, mas tem receio do aumento de custo do envio de cartas, e que a melhora não seja proporcional.
Paulo e Ariane se queixam do mesmo problema ao longo do tempo que trocam cartas: a demora para a entrega. O mineiro afirma que há 20 anos, quando começou a escrever cartas, as que iriam para o mesmo estado demoravam no máximo três dias e para fora, cinco. Hoje, ele afirma que para fora do estado demora de uma semana a um mês e que esse ano já aconteceu duas vezes de receber cartas depois de dois meses. Ariane afirma que, inclusive, cartas que enviou no mesmo momento para o Japão e São Paulo chegaram mais rápido do outro lado do oceano do que as que foram para as terras paulistas.
Os Correios passaram por um deserto de 10 anos sem concurso para carteiros e atendentes. Houve um concurso em 2011 e o último edital de contratação foi em 2021. Para Ariane e Paulo, a demora na entrega das cartas é ocasionada pela falta de estrutura e funcionários.
"Alugo uma caixa postal em uma agência próxima da minha residência. Eles disseram que tem muito funcionário afastado pelas lesões da natureza exaustiva do trabalho e por covid. Além disso, muitos funcionários vão se aposentar. Ou seja, está só saindo gente e não tem concurso público. O serviço piorou muito.” Paulo
Nas trocas de cartas, Paulo conheceu Roberto Luís Santos há mais de vinte anos. Os dois construíram uma amizade que foi além dos postais, se encontraram pessoalmente muitas vezes, mas continuam a manter a comunicação pela escrita. Roberto passou no concurso de 2000 para atuar como Carteiro em Belo Horizonte. Ele comenta que levava 14 quilos de cartas e encomendas para distribuir pela cidade e que o trabalho era exaustivo. Hoje, depois de ter passado a atuar como atendente na agência sem se locomover pela cidade por questões de saúde, Roberto está de licença médica remunerada. Segundo ele, a queda da qualidade do serviço está relacionada a vontade de privatizar a empresa. Isso porque, para o atendente, quanto pior a população achar que o serviço está mais apoiará a desestatização com esperança de melhora.
Foto: Roberto Luís
O BNDES está à frente do processo de desestatização dos Correios e, procurados para a matéria, não responderam. O Projeto de Lei que permite a desestatização foi aprovado na Câmara dos Deputados e aguarda aprovação do Senado. Segundo postagem do o site do Ministério das Comunicações no dia 05/08/2021, o PL prevê assegurar o serviço de postais, criação de tarifa social e garantia da estabilidade aos funcionários por pelo menos 18 meses. Além disso, proíbe o fechamento de agências e a criação da Agência Nacional de Telecomunicações e serviços postais que a Anatel assumirá a função de fiscalizar a prestação de serviços.
No Webinar feito pelo BNDES no canal do banco no YouTube, em 03/11/2021, o Diretor Jurídico, Saulo Puttini, reforçou que o serviço postal é diferente do de encomendas e que este direito dos cidadãos é garantido pela constituição, sendo assim, não pode ser violado. Saulo afirmou que na época da Constituinte de 88 os postais eram um serviço público de extrema relevância, pela carta ser o principal meio de comunicação da época, mas que hoje ainda é. Fabio Abrahão, diretor de Concessões e Privatizações do BNDES, que também estava presente no Webinar, explicou o que o projeto deve conter.
“O processo tem que embutir que passam por atender todo o território nacional o serviço Postal Universal, controle de preços, ou seja a companhia não terá liberdade para aquilo que for serviço postal universal (cartas, telegrama, encomendas não urgentes) isso será regulado e uma relação diferente entre o consumidor e a companhia, porque passará a ser controlado pela Anatel. É uma mudança estrutural, ou seja uma concessão junto com o processo de privatização de forma indissociável”
Foto: cartas Ariane Gerhardt
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