Sanitarista e deputados veem risco de negligência, já economistas acreditam que eficiência tende a aumentar
Autoridades políticas e ambientais que acompanham o processo de concessão da Companhia Estadual de Águas e Esgoto do Estado do Rio (Cedae) afirmam que o modelo de privatização pode trazer riscos à garantia do direito à água para os cidadãos fluminenses.
Sanitarista da Fundação Oswaldo Cruz, Alexandre Dias afirma que o formato do edital prioriza a atração de investidores em detrimento da promoção da saúde pública.
- O contrato não segue a lógica do direito humano e de promoção da saúde pública por meio do saneamento. Ele segue uma lógica de rentabilidade, para atrair o setor privado. Até as soluções tecnológicas são pensadas, não para prestar um serviço adequadamente, mas para reduzir o valor de investimento - diz o especialista em saneamento e controle ambiental.
Ainda segundo o pesquisador, "só quem não conhece a situação do saneamento hoje acha que, dentro do prazo estabelecido, a meta de universalização será alcançada".
De acordo com o deputado estadual Luiz Paulo (Cidadania), o modelo de concessão da Cedae pode fazer com que a empresa tenha ainda menos recursos para investir no tratamento da água que chega para população.
No formato da privatização em curso, apenas os serviços de tratamento de esgoto e distribuição de água foram concedidos à iniciativa privada, de maneira que a captação e o tratamento da água permanecem como obrigação estatal.
- Se a Cedae continuar oferecendo uma água de baixa qualidade, a situação continua a mesma. E a situação do Rio Guandu é muito complexa. Os rios da Baixada Fluminense despejam esgoto nele e isso acaba chegando na estação de tratamento. Só que desmembrada, a Cedae vai ter ainda menos recursos para modernizar as centrais de captação e tratamento, que precisam de reparos que chegam a cerca de R$ 1 bilhão - explica o deputado.
Por outro lado, o secretário de Estado da Casa Civil do RJ, Nicola Miccione, afirma que os investimentos previstos para o tratamento de esgoto e despoluição da bacia do Guandu deverão aumentar a qualidade da água que chega aos reservatórios da Cedae.
- Entendo que o investimento de 2,9 bilhões na bacia do Guandu e ainda outros investimentos, que vão impedir o despejo de esgotos nos rios, vão propiciar um fornecimento de água com maior qualidade para população. E além disso, a Cedae poderá focar sua atuação na captação e tratamento da água - diz o secretário de Estado da Casa Civil do RJ.
Para o economista Luiz Chrysostomo, que foi coordenador da privatização da Telebras em 1998, a partir da concessão da Cedae, a eficiência e a produtividade da empresa tendem a aumentar.
- O lucro potencial dessas empresas é multiplicado por 30, 40, 50 vezes, a qualidade do serviço pode melhorar dezenas de vezes, e a produtividade imensamente, quando a empresa é privatizada e é bem privatizada. O que não quer dizer que todas as privatizações dão certo, depende. A gestão privada pode ser mal feita, já aconteceram vários desses casos - diz ele.
Em artigo publicado no Valor Econômico, o economista e professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV) Gesner Oliveira afirma que "a deterioração fiscal" do Estado do Rio demonstra que o governo não seria capaz de investir o montante oferecido pela iniciativa privada.
- As vencedoras deverão realizar investimentos para despoluição da baía de Guanabara (R$2,6 bilhões), bacia do Guandu (R$2,9 em bilhões) e no complexo lagunar da Barra da Tijuca (R$ 250 milhões). Investimentos fundamentais, mas que a dramática situação fiscal do estado não permitiria que fossem realizados pelo poder público - diz o coordenador do Centro de Estudos de Infraestrutura e Soluções Ambientais da FGV.
Situação atual
A poluição do Rio Guandu, que abastece a maior parte da população do estado, já causou diversas crises na qualidade da água que chega ao consumidor. Relatos de moradores recebendo água com cor, cheiro e gosto ruins foram registrados em janeiro de 2020 e ainda no início deste ano.
Apesar de ter registrado um lucro líquido superior a R$ 1 bilhão em 2019, a gestão da Cedae admitiu ao RJ2, da TV Globo, que não fez grandes investimentos para resolver os problemas que prejudicavam a qualidade da água no início deste ano.
Segundo pesquisa da Firjan, em 2015, o Estado do Rio tinha 1,2 milhão de cidadãos sem acesso à rede de abastecimento de água e havia 5,6 milhões sem coleta de esgoto (7,4% e 33,6% da população, respectivamente). Além disso, 65,8% do volume de esgoto do estado não era tratado.
Em escala nacional, de acordo com pesquisa realizada em 2019 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apenas 68,3% dos domicílios no país tinham algum tipo de esgotamento sanitário, seja pela rede geral ou fossa séptica ligada à rede.
Leilão da Cedae
A venda de parte dos serviços da Cedae aconteceu por meio de leilão público realizado no dia 30 de abril de 2021. Foram arrecadados R$ 22,6 bilhões com a concessão de três dos quatro blocos ofertados. A arrecadação obteve ágio - valor adicional ao mínimo que era exigido no edital - de 114% em relação aos R$ 10,6 bilhões estimados inicialmente.
Os blocos 1 e 4 foram arrematados pelo Consórcio Aegea, enquanto o Bloco 2 foi leiloada ao Consórcio Iguá.
O Aegea havia sido o único concorrente a apresentar proposta para o Bloco 3, mas depois de arrematar outros dois blocos, decidiu retirá-la antes que fosse aberta.
O bloco que não recebeu lances reunia 22 bairros da Zona Oeste da capital e seis municípios do estado. Em novembro, o governo publicou um novo edital exclusivo para este bloco e o leilão está previsto para ocorrer no dia 29 de dezembro.
Ao todo, 29 cidades não haviam manifestado interesse em aderir à concessão e teriam que arcar, por conta própria, com a distribuição da água potável e a coleta e tratamento de esgoto. Com o novo edital, 14 delas resolveram aderir ao Bloco 3.
A partir das adesões, o número de pessoas beneficiadas cresceu de 1,9 milhão para 2,7 milhões. Além disso, com a ampliação do bloco, segundo o governador Cláudio Castro, o montante arrecadado pela licitação deverá subir de R$ 900 milhões para R$ 3 bilhões.
Edital e processos judiciais
No dia 28 de dezembro de 2020, Cláudio Castro autorizou a privatização da Cedae por meio de decreto-lei. Divulgado no fim do ano passado, o edital de concessão prevê a universalização da coleta e tratamento de esgoto no Estado do Rio até 2033.
A meta está alinhada ao que foi determinado pelo novo Marco Legal do Saneamento, sancionado em julho de 2020 pelo presidente Jair Bolsonaro.
Atualmente, a Cedae atende 64 municípios do Rio. Por meio da licitação, os serviços de distribuição da água, coleta e o tratamento do esgoto serão concedidos à iniciativa privada pelos próximos 35 anos.
As outras 28 cidades ou concederam individualmente o saneamento à iniciativa privada, como Niterói, na Região Metropolitana, ou fazem parte de um consórcio - caso da Região dos Lagos.
Até a realização do leilão, o governo enfrentou resistência da Assembleia Legislativa do Rio (Alerj) e ação judicial contra a concessão da Cedae:
a Justiça do Trabalho concedeu liminar suspendendo o leilão em função da possibilidade de demissão de 4 mil funcionários da empresa (26/04);
deputados da Alerj votaram pela suspensão do leilão (29/04).
A sentença da Justiça do Trabalho do Rio foi suspensa por decisão do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro Luiz Fux, no dia seguinte. O ministro determinou ainda a suspensão de "toda e qualquer decisão da Justiça" em primeira ou segunda instância, que impeça parcial ou integralmente o andamento da licitação.
Já a decisão da Alerj foi revertida pelo desembargador Benedicto Abicair, do Tribunal de Justiça do Rio (TJ/RJ).
O valor da tarifa
O pesquisador Alexandre Dias alerta para o risco de aumento da tarifa de água para o cidadão apesar da cláusula no edital que limita o crescimento do preço à correção da inflação.
- Se faltar água na rede, a concessionária vai aumentar o valor da água. O contrato prevê que eles vendam a água que recebem, então se não receberem, configura desequilíbrio no contrato e eles têm abertura para subir o valor. Se eles têm que distribuir água e a Cedae não dá, alguém tem que pagar por isso - afirma o sanitarista Alexandre Dias.
Em janeiro deste ano, um grupo de deputados da Assembleia Legislativa do Rio (Alerj) entrou com uma representação junto ao Tribunal de Contas do Estado (TCE) que apontou a presença de mecanismos de reequilíbrio financeiro no edital como possível forma de subir o valor da tarifa.
- Também não há clareza em relação aos critérios e sanções aos gestores caso não haja cumprimento dos parâmetros de qualidade e do desempenho por parte das empresas. Em outras palavras, eu acredito que não existe garantia nenhuma à população de que os serviços serão prestados com qualidade e por um preço justo. Já vemos problemas no edital, imagine quando ela estiver válida e sendo posta em prática - afirmou o então presidente da Comissão de Saneamento Ambiental (Cosan) da Alerj, o deputado Gustavo Schmidt.
O governo afirma que a tarifa social será expandida e irá atender a 5% da população. Atualmente, a taxa diferenciada para pessoas de baixa renda beneficia apenas 0,57% dos consumidores.
Para o economista Luiz Chrysostomo, apesar da tendência de alta na tarifa nos primeiros meses após a concessão, os preços devem cair depois que as empresas estabelecerem a operação do serviço e conseguirem alcançar patamares razoáveis de lucro.
Questionado sobre a atuação da iniciativa privada em concessões como um todo, o economista explica a maneira que os empresários encontram para tirar vantagens da cláusula de equilíbrio econômico financeiro que consta nos contratos.
- Para entrar na concorrência e ganhar a licitação, a empresa promete uma tarifa baixa. Só que uma vez na operação do serviço, alguns empresários se utilizam da necessidade de realizar obras e reparos na infraestrutura ou para aumentar a tarifa ou para ser financiado com o dinheiro público - afirma o economista que atuou na modelagem do Plano Nacional de Desestatização (PND) do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) na década de 1990.
Possível desinteresse em certas regiões
Caroline Rodrigues faz parte da campanha Água Boa Para Todos, um coletivo de organizações populares, pesquisadores e parlamentares que tem como objetivo combater a mercantilização da água e do saneamento e lutar pelo seu reconhecimento como direito humano.
A assistente social afirma que a iniciativa privada não tem interesse em investir nas áreas mais precárias pela falta de retorno financeiro.
- O edital diz que será investido um determinado montante em assentamentos precários, mas não diz onde é, não especifica que áreas são essas. O risco é que elas não façam esse investimento simplesmente porque não são obrigadas a fazerem. Se a área não for segura, se não for urbanizada, é retirada a obrigação de investir - diz a educadora da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Ong Fase).
Para Luiz Chrysostomo, os investidores que se propõem a executar o serviço de saneamento se planejam para operar nas diferentes áreas sem que isso afete o aspecto financeiro.
- Nenhum investidor entra em um serviço sem antes se planejar, analisar as possibilidades e traçar um plano para que consiga a margem de lucro desejada. Além disso, todos sabem que existem riscos, o investidor que não trabalha com riscos não faz nada. Mas para isso, ele vai tentar achar formas de maximizar o lucro em uma área, por exemplo, para compensar o baixo retorno de outra - afirma Chrysostomo.
Nesse contexto, o novo Marco Legal do Saneamento Básico, sancionado em julho de 2020, alterou o modelo anterior, de subsídio cruzado, pelo qual as grandes cidades atendidas por uma mesma empresa estatal ajudavam a financiar a expansão do saneamento para municípios com menor capacidade financeira.
Segundo o governo, para assegurar que os municípios pequenos sejam atendidos, a nova lei determina que os estados componham grupos ou blocos de municípios que poderão contratar os serviços de forma coletiva.
Os blocos devem implementar planos municipais e regionais de saneamento básico e a União pode oferecer apoio técnico e financeiro para elaboração dos planos.
Regulação do saneamento
A fiscalização sobre o cumprimento dos serviços da Cedae concedidos à iniciativa privada será realizada pela Agência Reguladora de Energia e Saneamento Básico do Rio (Agenersa). Em março deste ano, o Ministério Público do Rio abriu inquérito irregularidades na agência, como falta de transparência e não cumprimento de funções típicas de regulação.
- A Agenersa tem indicações políticas para o seu quadro de conselheiros, que são muitas vezes pessoas sem nenhuma qualificação. A agência não faz concurso público para ter seus quadros próprios. Com todo respeito à formação, mas os dois últimos indicados são delegados. Só que conhecer saneamento requer uma especialização. E mais do que isso, além de conhecer, é preciso ter total controle sobre esses processos. Há muito temor sobre isso - diz o deputado Luiz Paulo.
Rafael Menezes, nomeado pelo governador Cláudio Castro para a presidência da Agenersa em outubro deste ano, era seu assessor especial antes de entrar na agência.
Em setembro, a sabatina na Alerj que aprovou os nomes de Marcos Cipriano e Rafael Menezes para conselheiros da Agenersa durou apenas 24 minutos. Nesse tempo, a Comissão de Normas Internas e Proposições Externas da assembleia legislativa entrevistou e aprovou os dois.
A experiência mencionada por ambos para exercerem a função é a de terem sido delegados na Delegacia de Proteção ao Meio Ambiente (DPMA).
Para o economista Luiz Chrysostomo, a atuação dos órgãos fiscalizadores é fundamental para manutenção da qualidade do serviço prestado e ainda para evitar a transformação do monopólio público em monopólio privado.
- Foi sancionada uma lei em 2019 que dá independência financeira maior para as agências para que não sejam cooptadas politicamente e possam exercer seu papel de controle. Sempre houve uma preocupação para que não se transferisse monopólio público para privado, é a pior coisa que pode acontecer. Hoje em dia existe consulta ao CADE, em relação à organização econômica, que é a limitação dos monopólios e o estímulo à competição - afirma o economista.
Chrysostomo se refere à chamada Lei Geral das Agências Reguladoras, que entre outros avanços, possibilitou:
maior autonomia administrativa, financeira e orçamentária;
aumento da transparência e melhoria dos mecanismos de acesso a informações;
redução de interferências políticas;
exigência de qualificação técnica e experiência profissional para preenchimento de quadros.
O que dizem as agências
Procurada, a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) informou que passou a editar normas de referência com diretrizes para o setor de saneamento básico a partir de 2020, com a aprovação do novo marco legal do saneamento pelo Congresso Nacional.
Segundo a agência, a função fiscalizatória para a prestação dos serviços de saneamento permanece com as agências reguladoras infranacionais (municipais, intermunicipais ou estaduais) de saneamento. No caso do Estado do Rio, a Agência Reguladora de Energia e Saneamento Básico (Agenersa).
Questionada sobre sua atuação na fiscalização e regulação do serviço de saneamento, a Agenersa informou que pode recomendar ou determinar mudanças nos procedimentos, advertir e multar a Cedae, com o objetivo de adequar ou aperfeiçoar a prestação dos serviços públicos à população de acordo com a norma em vigor e sua previsão.
Sobre a atuação da agência na definição dos parâmetros previstos no edital de concessão, a Agenersa informou que não participa dos processos licitatórios, que são exclusivos do poder concedente - governo do estado, no caso da Cedae.
Ainda de acordo com a instituição, a agência faz o acompanhamento de todas as ações no que tange à regulação e fiscalização da Cedae para que as atribuições concedidas sejam executadas para melhoria de resultados na prestação dos serviços.
Diretrizes e procedimentos são estabelecidos, tendo como parâmetros critérios de eficiência e de continuidade dos serviços, mediante instruções normativas que estabelecem normas que a Cedae deve cumprir, sempre estipulando prazos para que a companhia possa se adaptar às novas regras emitidas.
A Câmara Técnica de Saneamento (CASAN) é o órgão interno responsável por acompanhar, supervisionar e fiscalizar os serviços da Cedae.
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