“Precisa de modificações estruturais drásticas”, afirma ex-servidor com mais de 10 anos na agência
Através dos serviços de streaming, os dados do mercado audiovisual nacional apontam que a dominância da influência estrangeira está longe de terminar. A agência responsável pela regulação, fomento e fiscalização da sétima arte brasileira, a Ancine, está ocupada fomentando projetos sem um acompanhamento fiscalizatório, e sem garantir qualquer presença pós-cinema para as obras contempladas. Através de dois especialistas, uma ou mais soluções podem ser a resposta para o problema.
O doutorando Alexander Kellner, 34, aponta a verticalização do mercado como uma justificativa para o fenômeno sem regulação. A verticalização se tratando de uma unificação do processo de criação do produto. A Netflix por exemplo é responsável pela produção, distribuição e exibição do seu conteúdo, diferente de produtoras independentes que dependem do dinheiro do Fundo Setorial do Audiovisual para produzir e lançar seus filmes. Quanto á uma possível regulação do streaming feita pela Ancine, ele responde:
- Acho que não regula, porque aconteceu sem regular. O streaming está 100% relacionado à revolução tecnológica, e o estado não acompanha a tecnologia. Uber é outro exemplo disso, ele entrou no país e depois você foi tentar regular o aplicativo.
Vinícius Portela, 41, mestre tanto em Direito Tributário quanto em Economia, serviu na Ancine de 2006 a 2020, e no último ano lançou um livro comentando justamente a MP 2.228-1 de 2001, a lei na qual a Ancine se estabelece como órgão regulador. Levando em conta a crise de transparência dos vários processos da Ancine, Portela defende a manutenção do controle estatal:
- Eu não acredito muito no modelo da auto regulação no audiovisual, porque você tem um enorme grau de conflito de interesse. Tem características econômicas muito específicas do setor, como ocorrência de falha de mercado. De cara você tem situações que é necessário o controle estatal.
Segundo a revista americana Variety, no dia 21 do mês passado, após quase 4 meses de seu lançamento na américa latina, o mais novo serviço de streaming HBO Max bateu a marca de 69 milhões de assinantes, após um total de 5 meses de existência. O serviço de streaming da Warner Bros se destacou devido à uma atitude polêmica tomada pela empresa, lançar seus filmes simultaneamente no cinema e no serviço de assinatura, que até o mês de junho estava disponível apenas nos Estados Unidos.
De acordo com os dados do site JustWatch, no segundo bimestre de 2021, com pouco mais de 7% de market share, HBO Max/HBO Go se consolida como o 5º maior serviço de streaming no Brasil, seguido por Globo Play (8%), Disney + (12%), Prime Video (24%) e Netflix (31%). Com quase 65% da população brasileira assinando pelo menos um desses serviços, é possível dizer que a maior forma de consumir conteúdo audiovisual atualmente é através dessas empresas.
Kellner, sendo um advogado da produtora independente Conspiração Filmes, acredita na auto regulação como uma solução do problema de falta de representatividade brasileira nas plataformas que agora dominam o audiovisual:
- O estado já está atrasado em relação a isso. Então eu acho que você vai ter duas opções; ou você vai ter uma auto regulação pelos players do setor, e aí você tem questões concorrenciais; e se isso em algum grau não funcionar, e você tiver prejuízo para players menores, aí sim você vai ter que ter uma regulação estatal, que mesmo assim pode ser criticada.
Sendo o Conselho Nacional de Autotregulamentação Publicitária, o Conar, o único exemplo de auto regulação no país, Kellner elaborou mais sobre o processo de tal modelo de agência reguladora e como seria feita:
- Não tem uma regra específica. Teria que ser feito uma análise de alguns pontos de vácuo normativo da Ancine, onde VoD seria um exemplo disso. Se em algum momento teve consulta pública na análise do vácuo regulatório, você poderia ter manifestações relacionadas à auto regulação. Você pode ter um diálogo construtivo entre a agência e uma outra associação, e existe um precedente para isso justamente no setor elétrico, com a ONS, que é privada, e a Aneel.
Portela, como um ex-servidor da agência, compreende os trâmites que a regulação do setor exige. Como diferentes players do mercado possuem custos diferentes para vender seu produto e como isso afeta a produtividade deles:
- Pensa Sky e Netflix. Você não vai conseguir uma auto regulação. Há situações que envolvem tributação que vão envolver interesse do estado, então você conseguir um grau de coordenação econômica com um mercado tão complexo, é muito difícil.
Pelos últimos anos, a Agência Nacional de Cinema tem sido alvo de incontáveis auditorias realizadas pelo Tribunal de Contas da União. No Tomada de Contas Especial, a investigação mais recente, o TCU analisou especificamente o sistema de fiscalização da agência, uma das responsabilidades regulatórias que o órgão executa, a fim de encontrar irregularidades que compunham os fundos. Todos esses processos levaram a agência a um processo de estagnação do Fundo Setorial de Audiovisual, FSA, que começou em 2019 e seguiu durante todo o tempo da pandemia, e por se tratar de uma agência reguladora de mercado, resultou numa interrupção completa do mercado brasileiro de audiovisual. Sem fundos para produção, sem produção.
Porém a Ancine pouco fez diante da ascensão dos serviços de assinatura, e por isso não surfou a onda do fenômeno do streaming. A primeira inclusão dos serviços de streaming no pacote regulador/fiscalizador da agência surgiu no Projeto de Lei 8.889 de 2017, que visava compreender mais acerca da disposição de filmes brasileiros nos serviços de assinatura. Após esse projeto, no final de 2020, foi realizado um substitutivo que adicionava mais dessas mesmas competências fiscalizatórias do VoD sob a Ancine, que já estava no processo de Tomada de Contas.
Portela lançou um livro comentando justamente a MP 2.228-1 de 2001, a lei na qual a Ancine se estabelece como órgão regulador. Na opinião do autor, a Ancine deixa a desejar até mesmo na execução do fomento, função que a agência era prezada até pouco tempo:
- Você tem um problema de execução até nas coisas mais básicas, como gestão de liberação de recursos, que não acontecia antigamente. Acompanhando pela imprensa, a Ancine tem uma posição e suas justificativas, mas pelo menos do meu parecer técnico, eu não entendo as justificativas da agência reguladora.
Quando abordado sobre essas justificativas, Portela comenta a decisão do TCU em pedir para Ancine cessar o lançamento de editais do FSA, tarefa necessária para o passo-a-passo da liberação de recursos para produtores:
- O Tribunal de Contas da União não pediu para a Ancine parar de liberar esses recursos, foi uma justificativa que a agência colocou, mas quando você vai ler o parecer técnico, não tem esse pedido formal. O que se pediu foi para transparecer melhor a metodologia de prestação de contas, duas coisas diferentes.
Kellner, ciente das falhas que a Ancine apresentou ao longo desses últimos anos, levanta a auto regulação como a solução para problemas de transparência e eficácia da agência:
- A auto regulação tem a vantagem de ser um pouco mais moderna e mais sensível a mudanças do que uma autarquia especial federal. Existe uma eficiência inerente no setor privado que o público tem dificuldades de alcançar. A auto regulação é o caminho das pedras para você ter algo mais célere.
Com o mundo retornando aos poucos ao seu estado pré-pandemia, deve-se questionar como a sétima arte no país se portará com a retomada dos cinemas. Se a Ancine conseguir alterar o curso que estamos para um mais próspero, ou aceitar um novo modelo para a regulação, caberá ao tempo decidir se aquela foi a escolha certa para o futuro da cultura audiovisual brasileira.
Alexander Kellner, 34, advogado da Conspiração Filmes, uma produtora independente brasileira, e doutorando em Regulação pela FGV, autor do texto Gatekeeping e benign big gun no contexto da agência nacional de cinema - ANCINE e do fundo setorial Audiovisual - FSA, publicado na Revista de Direito Administrativo e Gestão Pública no segundo semestre de 2020.
Vinícius Portela, 41, serviu na Ancine por mais de 10 anos, foi um dos primeiros a passar no concurso da agência e é mestre tanto em Direito Tributário pela UERJ quanto pelo Instituto de Economia da UFRJ. Autor do livro Agência Nacional de Cinema - Ancine, da ColeçãoSoluções de Direito Administrativo.Leis Comentadas. Série II Vol. 7, publicado em 2020 pela editora Revista dos Tribunais.
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